Coluna Folha de S.Paulo - 10.01.2006
Plantão médico
As vitórias sobre americanas e chinesas, a campanha que eternizou Hortência e Paula, o título mais importante do basquete nacional... isso não tem preço. Já a medalha de ouro daquele Mundial tem: R$ 19,9 mil.
O prêmio pela conquista de 1994 na Austrália está à venda no site de leilões Mercado Livre.
A peça pertence à médica Marli Kecorius, uma das sete integrantes daquela comissão técnica.
Alguns internautas foram piedosos, pensaram no pior. "Ela deve estar passando por apuros!"
Marli de fato perdeu dinheiro no basquete. A fim de acompanhar as meninas em treinos e jogos, renunciou a seus pacientes. Pagou para servir à seleção.
Mas ela se deu muito bem ao mudar de especialização. Abraçou a medicina estética e hoje fatura com o método de quimiocirurgia facial que desenvolveu.
Mora com a mãe em um apartamento (um por andar) nos Jardins, bairro de elite de São Paulo. Já realizou todos os sonhos de consumo. TV de plasma, home theater, videogame... Desfez-se do refúgio de veraneio na praia só porque "dava trabalho". E só não viaja com mais freqüência ao exterior porque a clínica e as aulas de pós-graduação não permitem.
Já que o dinheiro do leilão, então, não fará diferença alguma, estão certos os que apontam ingratidão, que acusam a médica de cuspir no prato em que comeu?
Marli não esconde de ninguém que o desgosto nasceu já no ano do milagre australiano. Enquanto os tetras do futebol recebiam barra de ouro do governo estadual, as campeãs do basquete levavam um reloginho de mesa.
Enfureceu-se ao ver que o triunfo não era capitalizado, não revertia no crescimento do esporte.
Torceu pela vitória de Gerasime Bozikis à confederação brasileira. Acreditou, como muitos, que a coisa mudaria para melhor.
O oposicionista ganhou a eleição; ela, a rua, e sem justa causa.
Arrasada, a médica deixou de vez de ir aos ginásios e de assistir aos jogos pela TV. Nem no Nintendo, passatempo predileto, a bola laranja sobreviveu. "Os games não têm as paradas no ar que a Hortência dava antes de chutar nem os passes por trás da Paula."
Marli foi a única a chorar na festa do décimo aniversário da medalha. Na hora eu pensei que fosse de alegria. "Não", ela esclarece agora. "Era mágoa", por não ter sido contatada uma única vez pela CBB até aquela semana.
Aos 59, a médica ainda conserva um arquivo fabuloso de imagens (todas digitalizadas!) e objetos da seleção. Mas não consegue conviver com ele. Sempre que vê a caixinha que protege a relíquia mais preciosa, a garganta entala.
O leilão virtual é, portanto, como ela decidiu achar alguém que dê valor ao símbolo de uma glória que dificilmente se repetirá.
"Não casei, não tenho filho, não deixarei herdeiros", diz. "Não quero que a medalha pare na mão de um burocrata do Estado."
Marli não está otimista, porém. Não por causa do preço alto, que afugentou os lances até aqui, mas porque sabe que, no fundo, o brasileiro não se importa. Para ela, o ouro não vale o quanto pesa. Para o país, não vale nada.
PS
Marli Kecorius chegou à seleção pelas mãos das jogadoras, e não da confederação. Ela atuava no Centro Olímpico paulistano em 1983 quando Paula e Vânia Teixeira pediram socorro. Foram, então, quase 14 anos de cumplicidade e aventuras. A médica costurou uniformes, dormiu no sopé de arquibancadas, saiu à cata de comida (milho cru, na Romênia pré-Mundial da Rússia-1986) e até tomou conta do filho de atletas (acalentou João Victor, de Hortência, em Atlanta-96). "Éramos felizes e não sabíamos", lembra, às lágrimas.
Link para a medalha em leilão: http://MedalhaDeOuroNoML.notlong.com
Blz?
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